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A revolução tecnológica do século XXI modificou toda a configuração da economia global e, como não poderia ser diferente, impactou diretamente o mercado de trabalho, provocando uma verdadeira disrupção das relações trabalhistas até então vigentes.
Um dos setores da economia que melhor representa essa revolução e seu impacto nas relações de trabalho é o de serviços de transporte de passageiros e de entrega de bens de consumo. Na onda da nova economia digital, e apoiado numa crescente demanda por tais serviços, o setor apresentou rápido crescimento nos últimos anos. Com altos investimentos em tecnologia da informação, novas empresas surgiram e se instalaram no Brasil, passando a ofertar os serviços de transporte e entrega por todo o país.
Trata-se de empresas que oferecem serviços de transporte e entrega por meio de plataformas digitais, os chamados aplicativos. Com inovação e intenso uso de tecnologia, os aplicativos provocaram considerável alteração no padrão dos serviços de logística e locomoção, atraindo um número cada vez maior de consumidores para os novos serviços disponibilizados.
O crescimento da demanda pelos serviços de transporte e entrega por aplicativos pode ser explicado pela comodidade, pela facilidade e pela economicidade que aqueles serviços proporcionam, consolidando-se na preferência dos usuários-consumidores. Esta preferência foi reforçada pela pandemia de Covid-19, devido à necessária adoção de medidas de distanciamento e isolamento sociais que, indiretamente, induziram a uma maior procura pelos serviços de transporte e entrega em plataformas digitais.
Com a crise econômica e a alta taxa de desemprego que há anos afetam o Brasil, uma legião de trabalhadores desocupados ou subocupados passou a ofertar sua força de trabalho a essas empresas de aplicativos para a prestação de serviços de transporte e entrega, tornando-se seu único ofício e fonte de renda. Ainda, por oportuno, verifica-se que tais serviços geram uma extrema e prejudicial competitividade entre os trabalhadores, e são caracterizados por baixas qualificação e remuneração e por extensas jornadas de trabalho.
Junto a essa radical transformação tecnológica no setor de serviços de transporte e entrega, levando em conta a grande oferta de mão de obra disponível, escancarou-se uma dura, preocupante e controversa realidade social: a relação de trabalho estabelecida entre motoristas e entregadores e as empresas que operam por meio de plataformas digitais.
Desde o início das atividades das empresas de transporte e entrega por aplicativos no Brasil os trabalhadores cadastrados em suas plataformas foram por elas reconhecidos e contratados como microempreendedores individuais (MEI) ou como autônomos, afastando-os, assim, de todos os direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Tal contratação de trabalhadores à margem da legislação trabalhista ganhou relevo no atual debate sobre as novas formas de trabalho contemporâneas por meio do uso intensivo da tecnologia da informação, notadamente os serviços prestados por motoristas e entregadores de aplicativos.
Nesse contexto, o questionamento a ser feito é se esses motoristas e entregadores são ou não são, na realidade, empregados. Como empregados, enquadrariam-se em uma das modalidades contratuais previstas na CLT, sendo devidos todos os direitos trabalhistas nela previstos. Já como não empregados, ou autônomos, a CLT não se aplicaria e, consequentemente, os direitos trabalhistas celetistas não seriam a eles devidos. O questionamento colocado é a razão da controvérsia atual que domina o campo trabalhista e que envolve diversos atores sociais e instituições públicas ligadas ao trabalho.
O presente artigo se propõe a apresentar uma resposta para esse questionamento. Numa breve análise qualitativa, amparada no ordenamento jurídico trabalhista vigente, serão explorados algumas características fundamentais do trabalho sob demanda, os requisitos e os fundamentos legais aplicáveis com vistas a distinguir uma relação de emprego de uma relação de trabalho autônomo, bem como precisar a real relação existente e a modalidade contratual adequada, tudo em referência aos serviços prestados por motoristas e entregadores por meio de plataformas digitais.
A relação de emprego, assim como a relação de trabalho autônomo, são espécies do gênero relação de trabalho. Para a caracterização da relação de emprego devem estar presentes, de forma cumulativa, os requisitos constantes nos consagrados arts. 2º e 3º da CLT, quais sejam: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação.
No passado, doutrinadores afirmavam que a subordinação estava acentuada na ideia de dependência, sendo esta dependência analisada sob o aspecto econômico ou técnico. Tal dependência decorria de matiz pessoal, ou subjetiva, e não objetiva.
Atualmente, a teoria da dependência para caracterização da subordinação encontra-se ultrapassada. É pacífica na jurisprudência, bem como entre juristas e doutrinadores trabalhistas, a natureza jurídica da subordinação, que decorre do próprio contrato de trabalho estabelecido entre empregado e empregador.
A subordinação é o elemento decisivo para a afirmação da existência, ou não, da relação de emprego, como também é o elemento principal de diferenciação entre a relação de emprego e as diversas modalidades de trabalho autônomo. Logo, pode-se dizer que a contraposição à subordinação é a autonomia.
E é exatamente sobre o elemento subordinação que reside a controvérsia ora analisada. Diferentemente, em relação à presença dos demais requisitos configuradores do vínculo empregatício parece não haver dúvidas, restando incontroversa a presença cumulativa desses requisitos nas relações trabalhistas estabelecidas entre motoristas e entregadores e plataformas digitais.
Todas as empresas que ofertam serviços de transporte ou entrega por aplicativos afirmam inexistir entre elas e os trabalhadores cadastrados em suas plataformas qualquer tipo de subordinação. Pelo contrário, afirmam que há autonomia e independência desses trabalhadores na prestação dos serviços, já que esses profissionais têm total liberdade para se conectarem ou não ao aplicativo, podendo escolher o horário de trabalho, e para aceitarem ou recusarem o direcionamento (chamado/oferta) de serviços.
Nesse sentido, com fundamento na autonomia dos trabalhadores e ausência de subordinação, as empresas não reconhecem seus motoristas e entregadores cadastrados como empregados, afastando-os, portanto, dos direitos trabalhistas previstos na CLT e da proteção social prevista na legislação previdenciária.
Na Justiça do Trabalho são inúmeras as ações individuais de motoristas e entregadores pleiteando o reconhecimento do vínculo empregatício com as empresas para as quais prestam e/ou prestaram serviços por meio de aplicativos. Ora é reconhecida a relação de emprego, configurando-se a existência de subordinação, ora tal relação não é reconhecida, configurando-se neste caso a existência de autonomia.
A celeuma nas decisões judiciais trabalhistas também se concentra na existência de subordinação ou de autonomia nos serviços prestados por motoristas e entregadores. E no centro dessa discussão está o fato de os motoristas e entregadores deterem a faculdade tanto para acessar o aplicativo da empresa quanto para aceitar os serviços de transporte ou entrega direcionados.
Isto posto, pode-se inferir que a presença dos demais elementos configuradores da relação de emprego (pessoalidade, não eventualidade e onerosidade) é incontroversa, direcionando o debate exclusivamente ao elemento subordinação.
Sem a pretensão de esgotar o debate, mas sim de subsidiá-lo em busca da correta solução jurídica para a controvérsia que se apresenta, importa trazer e analisar aqui recentes conclusões de uma fiscalização trabalhista e de uma decisão judicial, e recente iniciativa legislativa, todas acerca das relações de trabalho envolvendo entregadores e motoristas de aplicativos.
Inicialmente, robusto relatório de fiscalização elaborado pela Inspeção do Trabalho após ação fiscal realizada na empresa de entregas por aplicativo Rappi, no ano de 2020 em São Paulo, foi taxativo quanto à presença de todos os elementos caracterizadores da relação de emprego nos serviços de entrega pelo aplicativo. Nota-se, por oportuno, que os serviços de entrega de bens por aplicativos se equiparam aos serviços de transporte de pessoas por aplicativos, estendendo-se a estes as características e conclusões referentes às relações de trabalho estabelecidas na plataforma Rappi, consolidadas no mencionado relatório.
Em síntese, no relatório, contendo farta produção probatória, Auditores- Fiscais do Trabalho asseguram que a empresa fiscalizada exerce seus poderes diretivo, regulamentar e disciplinar, e concluem pela existência de fato do vínculo empregatício entre os entregadores e a empresa de entregas por aplicativo.
No documento, a autoridade trabalhista, ao relatar a presença do elemento subordinação jurídica, destaca a importância da aplicação do art. 6º, parágrafo único, da CLT, que diz: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Nesse ponto, observa-se que o legislador foi muito feliz ao inserir essa previsão legal na CLT no ano de 2011, pois reconheceu a metamorfose da subordinação nas relações de emprego para, afastando qualquer dúvida sobre o assunto, equiparar os meios telemáticos e informatizados de supervisão aos meios pessoais e diretos de comando, atraindo, assim, a proteção da legislação trabalhista ao maior número de trabalhadores possível frente às novas relações de trabalho advindas do uso da tecnologia da informação.
Dessa forma, se antes da atualização da CLT em 2011 poderia haver algum questionamento quanto à existência de autonomia daqueles trabalhadores que prestam serviços com flexibilidade de horário e/ou sem ordens diretas do tomador de serviços, por não estarem sob a vigilância e controle tradicionais, hoje não há mais dúvida de que o monitoramento e o controle eletrônicos, com intensa utilização de tecnologia da informação, caracteriza subordinação até mesmo em seu sentido clássico.
Ademais, também de suma importância para a presente análise, o minucioso relatório demonstra a adequação do contrato de trabalho intermitente previsto na CLT à relação de emprego ora reconhecida, e enfatiza seu regramento como fundamento essencial à descaracterização da suposta autonomia dos entregadores alegada pela empresa fiscalizada.
O contrato de trabalho intermitente foi incluído à CLT pela lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista) e está definido no seu art. 443, § 3º, nos seguintes termos: “Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria”. Já as características dessa nova modalidade contratual estão dispostas no art. 452-A e parágrafos.
Registra-se que a prestação de serviços se dá com subordinação, sendo o contrato de trabalho intermitente uma modalidade de contrato de emprego e, portanto, o trabalhador intermitente é empregado. No mais, a prestação de serviços é descontínua e a inatividade não é considerada tempo à disposição do empregador.
Com efeito, a característica fundamental da dinâmica do contrato de trabalho intermitente, e que interessa à resposta e à solução buscadas neste texto, concentra-se nos §§ 1º e 3º do art. 452-A da CLT, ambos alinhados com o já mencionado parágrafo único do art. 6º. O § 1º diz “O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência”. Já o § 3º diz “A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente”.
Fazendo-se a devida analogia com o trabalho sob demanda em plataformas digitais, o regramento do § 1º aplica-se às convocações de motoristas e entregadores para a prestação de serviços, as quais se dão de forma intermitente e conforme a necessidade do empregador. Tais convocações, ou direcionamentos de serviços, são controlados e monitorados pelas empresas de aplicativos por meio de algoritmos programáveis e de tecnologia da informação, e dependem da demanda pelos serviços, estes contratados por usuários-consumidores dos aplicativos. Por sua vez, o regramento do § 3º aplica-se à recusa, ou não aceitação, de convocações para prestação de serviços por parte dos motoristas e entregadores, conduta aquela que não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.
Em outras palavras, a simples recusa de uma corrida ou de uma entrega não pressupõe a existência de autonomia. Ao contrário, tal recusa não afeta o requisito subordinação para a configuração da relação de emprego.
Retomando a controvérsia em análise, revela-se que os argumentos utilizados pelas empresas de transporte e entrega por aplicativos, e por parte da doutrina e dos magistrados trabalhistas, de que os trabalhadores são livres para se conectarem ou não aos aplicativos, com escolha do horário de trabalho, e para aceitarem ou recusarem serviços, configurando autonomia e independência, não merecem prosperar. Como descrito, com fundamento nos dispositivos legais que regulam o trabalho intermitente, fica prejudicada a autonomia nessa modalidade contratual diante dos argumentos postos, restando caracterizadas a relação de emprego e a presença do elemento subordinação.
Na sequência, em consonância com as conclusões da Inspeção do Trabalho, decisão do Juízo da 1º Vara do Trabalho de Sete Lagoas/MG, publicada em outubro/2021, nos autos de uma reclamação trabalhista interposta por um motorista contra a empresa de transportes por aplicativo Uber, reconheceu a existência de vínculo empregatício entre o motorista e a empresa na modalidade de contrato de trabalho intermitente.
A sentença, ao destacar a presença de subordinação jurídica, com fundamento nos arts. 6º, parágrafo único, e 452-A, § 3º, da CLT, constatou a real relação de emprego existente e deixou evidente a falta de autonomia do motorista ao identifica-lo como trabalhador intermitente. Mais uma vez, a presente decisão judicial ratifica a adequação do contrato de trabalho intermitente aos serviços de transporte e entrega prestados por motoristas e entregadores de aplicativos.
Até aqui, resta inequívoca a utilização do contrato de trabalho intermitente como solução jurídica para a controvérsia apontada. No mais, percebe-se que os dispositivos legais que regulam o trabalho intermitente na CLT são de fácil cumprimento ao se utilizar da mesma tecnologia da informação que dá suporte ao modelo de negócios das empresas de aplicativos. Assim sendo, em homenagem ao princípio da plenitude do ordenamento jurídico, não há que se falar em lacuna na legislação trabalhista no que tange à regulamentação do trabalho em plataformas digitais.
Por último, no âmbito legislativo, há também acentuada controvérsia acerca das relações de trabalho oriundas de serviços prestados por aplicativos. São muitos os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional na tentativa de estabelecer regramento específico àquelas relações de trabalho. No entanto, ao encontro do que foi assentido até aqui, oportuno se faz mencionar o teor do PL 3.055/21, publicado em 02/09/2021 no diário do Senado Federal, de autoria do senador Acir Gurgacz (PDT/RO).
O projeto de lei pretende a alteração da CLT ao dispor que as relações de trabalho entre as empresas operadoras de aplicativos e os condutores de veículos de transporte de passageiros e de entregas de bens de consumo devem ser reguladas pelos artigos que dispõem sobre o contrato de trabalho intermitente, conforme previsto no art. 443, § 3º, do mesmo diploma legal. E, como justificação, menciona a necessidade da formalização desses trabalhadores como empregados para a garantia de direitos mínimos a eles.
Em que pese a boa intenção e preocupação do nobre senador ao garantir direitos trabalhistas previstos na CLT, denota-se prescindível tal projeto de lei. Os dispositivos legais que tratam do trabalho intermitente na CLT estão vigentes e possuem plena eficácia.
Repisa-se, não há lacuna na legislação trabalhista para a controvérsia laboral ora discutida. O conteúdo do referido projeto de lei nada mais é do que a afirmação de que o trabalho sob demanda por aplicativos se amolda aos termos do contrato de trabalho intermitente previstos na CLT.
Portanto, manifesta-se plausível a aplicação da CLT, notadamente do contrato de trabalho intermitente, às relações de trabalho em plataformas digitais. Não obstante, infelizmente, até o presente momento, há grande resistência no Brasil em reconhecer esses trabalhadores como empregados e inseri-los no arcabouço legal trabalhista. Deseja-se, assim, que as empresas de aplicativos ajam com a devida responsabilidade social ao contratar seus motoristas e entregadores na condição de empregados, e não de autônomos.
Na contramão da busca por justiça e paz sociais, e em desprezo ao valor social do trabalho como fundamento da República, são explícitos o desequilíbrio da relação capital-trabalho e a precarização perpetuada pela informalidade nos serviços prestados por motoristas e entregadores de aplicativos, trazendo prejuízos não só aos trabalhadores diretamente envolvidos como também ao Estado brasileiro e a toda sociedade.
Por fim, em vista da realidade precarizante que se apresenta, urge o reconhecimento de direitos trabalhistas e previdenciários a esses trabalhadores, garantindo-lhes dignidade e proteção social. Para tanto, conforme demonstrado neste texto, e sem a pretensão de afastar a aplicação de outras modalidades contratuais trabalhistas previstas na CLT, mostra-se plenamente adequada a utilização do contrato de trabalho intermitente como instrumento legal de regularização e formalização do trabalho sob demanda por aplicativos.