quinta-feira, 30 outubro, 2025
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41º ENAFIT – A relação viciosa entre crise climática e trabalho análogo ao de escravo

Por: Claudia Machado

Em um momento de crescente preocupação global com as mudanças climáticas, o 41º ENAFIT, realizado em Belém do Pará, dedicou um de seus painéis mais impactantes à intrínseca e alarmante relação entre a degradação ambiental e a persistência do trabalho análogo à escravidão no Brasil. O painel “A relação entre a degradação do meio ambiente e a exploração do trabalho escravo” trouxe à tona a urgência de uma abordagem integrada para enfrentar essas questões complexas.

A discussão reuniu especialistas que detalharam como a exploração da força de trabalho e a destruição ambiental se retroalimentam, criando um ciclo vicioso com consequências devastadoras para a sociedade e o planeta.

A Auditora-Fiscal do Trabalho, Vera Jatobá, abriu o painel com uma retrospectiva da difícil batalha contra o trabalho escravo no Brasil. Ela lembrou que, embora a questão tenha ganhado maior visibilidade a partir da década de 1990, com a formação das primeiras cadeias produtivas e a conscientização sobre o uso de mão de obra infantil escravizada em atividades como a produção de carvão, o problema já era enfrentado de forma precária por colegas nos anos 1970 e 1980, em um período de ditadura onde denúncias eram abafadas e a insegurança para os fiscais era imensa.

Vera Jatobá detalhou como diversas atividades econômicas, historicamente ligadas à exploração do trabalho, são também grandes vetores de degradação ambiental. Ela citou a monocultura da cana-de-açúcar, que ataca a biodiversidade e contamina com agrotóxicos, e o desmatamento, impulsionado pela pecuária e pela produção de carvão, que consomem o solo e destroem florestas. Em uma fala marcante, a auditora descreveu um cenário desolador em uma viagem à região do Araguaia, onde, em vez de um céu limpo, encontrou nuvens de queimadas e vestígios de madeira nobre ilegal, como o mogno, ilustrando a conexão visceral entre o crime ambiental e a exploração humana. A descoberta de casos de má formação fetal em mulheres na região de Redenção (PA), que trabalhavam em condições insalubres, trouxe um alerta chocante sobre os impactos diretos na saúde das comunidades.

O ciclo vicioso e a ameaça climática

O presidente da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, aprofundou a análise da interdependência entre os dois fenômenos. Sakamoto ressaltou que “trabalho escravo leva ao aquecimento global, leva à mudança climática, que leva a mais trabalho escravo, que leva a mais mudança climática”. Ele enfatizou que essa não é uma coincidência, mas uma relação de causa e consequência, formando um ciclo onde trabalhadores vulnerabilizados são empurrados para atividades que destroem ecossistemas, o que, por sua vez, gera mais secas, inundações e desertificação, aumentando a vulnerabilidade social e criando mais “refugiados ambientais” facilmente cooptados para a exploração.

Sakamoto destacou que a pecuária bovina, a atividade econômica mais flagrada com trabalho análogo à escravidão desde 1995, é também uma das principais causadoras de emissões de gases de efeito estufa no Brasil e no mundo. A destruição dos biomas brasileiros, seja na Amazônia, Cerrado ou Pantanal, tem sido realizada com “mãos cativas”. Ele criticou a visão simplista de culpar apenas o fazendeiro, apontando para um “sistema econômico” e “cadeias globais de produção” que se beneficiam da superexploração do trabalho, muitas vezes esquecidas nas denúncias.

A urgência do tema foi sublinhada por Sakamoto ao afirmar que a mudança climática é a “maior ameaça que a gente sofre como raça humana” e que o combate ao trabalho escravo deve ser acelerado como parte da solução. Ele também fez um alerta sobre as tentativas de “legalização da pejotização” e fraudes trabalhistas em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), que poderiam piorar ainda mais a situação.

Os desafios da fiscalização e a luta por responsabilização

Sílvia Silva da Silva, procuradora do Trabalho e coordenadora regional de erradicação do trabalho escravo e enfrentamento ao tráfico de pessoas do MPT 8ª Região, trouxe a perspectiva da linha de frente do combate. Ela descreveu as condições precárias enfrentadas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, que percorrem longas distâncias em carros inadequados e enfrentam verdadeiros arsenais em propriedades fiscalizadas, diferentemente do passado, onde espingardas eram o máximo a ser encontrado. O déficit de mais de 1.300 Auditores-fiscais em 12 anos impacta diretamente a capacidade de fiscalização, permitindo que empresas e empreendimentos se sintam “confortáveis em praticar esse crime”.

A procuradora reforçou que não se trata apenas de irregularidades trabalhistas, mas de “violações graves de direitos humanos e degradação ambiental” que andam de mãos dadas com a degradação humana. Ela citou exemplos chocantes: trabalhadores sem água potável, sem alimentação adequada, fazendo necessidades fisiológicas no mato, utilizando recipientes de agrotóxicos para beber água ou guardar alimentos. Muitas vezes, esses são trabalhadores analfabetos, sem acesso a profissionalização, que aceitam essas condições por mera subsistência. A procuradora destacou o trabalho infantil na pecuária como uma das piores formas de exploração.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem atuado em duas frentes nacionais: capacitação da rede de atendimento às vítimas, treinando servidores públicos municipais para identificar e denunciar casos; e o projeto de responsabilização da cadeia produtiva. Sílvia da Silva enfatizou a necessidade de responsabilizar empresas líderes que se beneficiam indiretamente da exploração. Ela mencionou procedimentos em curso contra gigantes do setor de produção de alimentos, exigindo o mapeamento completo da cadeia produtiva e a assunção de responsabilidade por violações de direitos humanos, incluindo o pagamento de verbas trabalhistas indevidas, mesmo que o fornecedor explorador não seja direto.

O papel da academia e a urgência de um novo rumo

Valena Jacob, diretora do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), sublinhou o papel crucial da academia no enfrentamento do trabalho escravo. A UFPA tem formado especialistas em direito do trabalho, além de oferecer assistência jurídica gratuita para trabalhadores resgatados ou que conseguem fugir da exploração. A “clínica” da UFPA atua no Pará e Amapá, recebendo casos diretamente e buscando assegurar os direitos dos trabalhadores, mesmo diante da escassez de varas trabalhistas e das dificuldades de acesso à justiça.

Valena alertou que o número de trabalhadores atendidos pela clínica triplicou, demonstrando a crescente demanda e a necessidade de um suporte jurídico mais amplo. Ela citou um caso dramático de um trabalhador idoso que, após ser baleado, foi assistido pela clínica para garantir o mínimo de seus direitos, enquanto o fazendeiro foi condenado e preso. A academia, junto aos órgãos de fiscalização, busca responsabilizar grandes empresas e fazendeiros, combatendo a impunidade e garantindo que o vínculo empregatício seja reconhecido, mesmo em casos de “pejotização” fraudulenta.

Uma encruzilhada para o futuro

A conclusão do painel ressoou um apelo urgente por um novo modelo de desenvolvimento. A crítica foi direcionada a diferentes vertentes políticas: uma direita que se mostra indiferente às mudanças climáticas e uma esquerda que, por vezes, abraça um “negacionismo light”, priorizando o lucro imediato e a exploração de recursos como o petróleo, em detrimento da sustentabilidade e da vida.

Os palestrantes lembraram os recentes desastres ambientais no Brasil – de inundações no Rio Grande do Sul a queimadas na Amazônia e deslizamentos em Petrópolis – como evidências irrefutáveis de que “não dá mais tempo” para adiar ações. A afirmação de que “manter o petróleo embaixo da terra talvez seja mais valioso” do que explorá-lo reforça a necessidade de inteligência e coragem para romper com os erros do passado.

Coordenaram o painel o presidente do 41º Enafit, Raimundo Barbosa e o Auditor-Fiscal do Trabalho, Benvindo Coutinho.

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