sábado, 23 novembro, 2024
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ARTIGO: Qual sindicato que queremos? (Carmen Cenira e José Claudio Magalhães)

 * Carmem Cenira Pinto Lourena Melo

**José Claudio Magalhães Gomes

As inúmeras transformações pelas quais tem passado a sociedade modificaram a morfologia do mundo do trabalho, implicando em mudanças diretas na estrutura do sindicalismo internacional e brasileiro. Em face da aplicação de sucessivos planos neoliberais na década de 1990, nota-se um refluxo na organização do movimento sindical e dos movimentos sociais no país.

Saímos de um sindicalismo de resultados, passamos por um sindicalismo propositivo e hoje qual o sindicalismo que estamos vivenciando? No Brasil, estamos diante da destruição de direitos políticos, sociais, trabalhistas, previdenciários e sindicais, o que traz ao movimento sindical e aos movimentos sociais momento crucial e desafiador  para que  responda à necessidade de se reorganizar com o objetivo de continuar representando a classe trabalhadora, defender e ampliar seus direitos conquistados, sempre com o fim precípuo de manter e assegurar o Estado Democrático de Direito,

Outrossim, no período de 2003 a 2010, o governo de Luís Inácio Lula da Silva (Lula), eleito com um amplo apoio das classes trabalhadoras no Brasil, não teve o condão de confrontar com esse ideário neoliberal, tendo inclusive aprofundado, de certa forma, a aplicação dessa política que através de “Leis Reformistas”, nada mais trouxeram do que a precarização das relações de trabalho, facilitando a aplicação de políticas relacionadas à flexibilização e supressão dos direitos sociais, conquistados por longas décadas e à duras penas pelos trabalhadores.

Ainda, diante deste cenário cruel para o trabalhador, defendemos a tese da centralidade do trabalho, em contraponto aos que a colocam por terra. Mesmo em uma sociedade pós-industrial, em que o trabalho deixaria de ter os pesos quantitativo e qualitativo atribuídos em outros tempos, o trabalho ainda guarda relevância na criação de riqueza capitalista, cabendo à classe trabalhadora, reivindicar aquilo que lhe seria de direito, ainda que transformados, face a incessantes inovações técnico-científicas, fazendo surgir novos paradigmas de gestão e produção.

Na esteira deste raciocínio, trazemos ao centro do debate o papel do sindicato na vida do trabalhador e da sociedade, porque a ação sindical exerce função importante no sistema de freios e contrapesos, que tem como princípio a separação dos poderes e a garantia do Estado Democrático de Direito e das liberdades individuais. Para que o abuso de poder não ocorra, é necessário que “o poder freie o poder”.

Destarte, o poder é uma forma de controle social capaz de direcionar a conduta de um determinado grupo de pessoas. Contudo, o exercício do poder tende, a ultrapassar e, até mesmo, a abusar dos limites estabelecidos pela lei. Logo, é fundamental a constante alternância dos dirigentes nos poderes Legislativo e Executivo, nos regimes democráticos.

Uma associação profissional ou sindicato, para implementar uma pauta de reivindicações, precisa ter algum poder, definido poder como: “a possibilidade de se impor a vontade própria ao comportamento de outras pessoas” (clássica definição de Max Weber).

Este poder em uma entidade sindical é alicerçado, fundamentalmente, no que os estudiosos se referem como “simetria bimodal” da organização. Este conceito pouco usado atualmente, parece ser hermético. Entretanto, é algo muito simples, sem usar esta denominação, qualquer pessoa que milita em uma associação profissional sabe o que é, por experiência própria.

“A simetria bimodal da organização é uma das suas características mais óbvias, mais importantes e, muito curiosamente, uma das mais ignoradas. Conforme referido, o indivíduo submete-se aos objetivos comuns da organização e deste exercício interno do poder resulta a capacidade da organização impor externamente a sua vontade. De um depende o outro. Esta é a característica invariável de todo o exercício de poder organizado. Os sindicatos podem ilustrar a questão. Os seus membros, sejam quais forem as suas preferências individuais ou planos pessoais, aceitam os seus objetivos no que se refere a salários, condições de trabalho e outros benefícios. E independentemente das suas necessidades ou desejos, renunciam ao trabalho e ao pagamento em caso de greve. Desta submissão interna depende o poder externo do sindicato a sua capacidade para conquistar a submissão do empregador, ou, ocasionalmente, do governo. Se a solidariedade do sindicato, sinônimo de eficaz disciplina interna ou submissão, for elevada, então as hipóteses de se obterem as exigências do sindicato ou de uma greve bem sucedida são boas. O poder é exercido eficazmente. Se nas suas fileiras abundarem pessoas que não acatem as decisões do sindicato, fura-greves, informantes, ou homens de outro modo relutantes ou de tendência recalcitrante, a hipótese de êxito é menor. Deste modo, o poder externo resulta do interno.”[1] (Os grifos são nossos).

Esta é a questão fulcral, uma associação profissional deve, necessária e primordialmente, ser capaz de desenvolver a solidariedade entre seus membros, pelo menos nos assuntos comuns. Todavia, vamos definir solidariedade, em homenagem à precisão. Solidariedade, na definição de CHARLES GIDE, é:

“sacrifício de um interesse individual, meu dinheiro, meu trabalho, meu tempo, minha liberdade em troca de uma vantagem social, a vantagem que o indivíduo encontra em formar parte de uma associação e que lhe confere os mais poderosos meios para seu desenvolvimento”… “Concorda-se no sacrifício de uma parcela do eu individual para fazer crescer o eu social, a associação profissional, o sindicato, é um dos melhores exemplos que se pode citar. O operário sindicalizado aceita realizar certo sacrifício, do seu dinheiro, sob a forma de contribuições, de suas noites para assistir às sessões e reuniões, de sua independência para cessar ou retomar o trabalho quando lhe é dado o sinal. Tudo isto com o objetivo de pertencer a uma associação poderosa que lhe defenderá e que lutará por seu salário, e que fará de sua impotência individual uma força, e que faz que pelo fato de estar sindicalizado se torne forte” [2]

Sim, da necessidade da solidariedade, assim estabelecida, creio ninguém duvida, porém como desenvolver esse espírito, em uma sociedade na qual as pessoas estão, rigorosamente, fechadas, no seu pequeno mundo, pessoas com opiniões consolidadas,  não abertas e racionais?

Identificamos, assim, a questão de base do movimento sindical. Muitos dos integrantes da categoria profissional não acreditam na sua associação sindical. Alguns não acreditam sequer que a entidade tenha alguma utilidade. Inúmeros nem ao menos são sindicalizados.

Isso não ocorre por acaso. Foram longos anos de propaganda anti-sindical, iniciada na década de setenta do século passado, na Inglaterra comandada pela Sra. Margareth Thatcher. Mesmo a oposição trabalhista na Inglaterra sucumbiu e não apresentou uma alternativa consistente, mas somente um chamado “thatcherismo de face humana”, isto é, uma rematada enganação. Além da propaganda, eficazes modificações na legislação com vistas a fragilizar os sindicatos, combinado com uma reestruturação produtiva e “cereja no bolo”: “um judiciário individualista e de laissez-faire sobre a lei”. Importante saber o que aconteceu na Inglaterra, pois, o mesmo modelo, mutatis mutandis, foi aplicado em todo o mundo.[3]

E quem estudou com profundidade as consequências pessoais, individuais, dessas medidas todas, iniciadas na Inglaterra e Estados Unidos, foi Richard Sennett [4], sociólogo professor na London School of Economics, entre outras instituições universitárias dos Estados Unidos e Inglaterra.

Cremos que todos vão concordar, por exemplo, com esse parágrafo do livro de Sennett: “Os grupos tendem a manter-se juntos ficando na superfície das coisas; a superficialidade partilhada mantém as pessoas juntas evitando questões difíceis, divisivas, pessoais”[5]. Ou seja, é uma sociabilidade de superfície, da qual derivam problemas psíquicos importantes, que em milhares de casos terminam em medicalização.

Estes ataques ao sindicalismo e sua decorrência nas relações trabalhistas e pessoais, ocasionou um processo de afastamento dos sindicatos e o estabelecimento de uma “burocracia profissional”. Leia com atenção este trecho do trabalho de John McIlroy:

“O declínio na democracia está relacionado à redefinição dos sindicatos como organizações assistenciais dirigidas por administradores profissionais. A militância leiga hoje é menos privilegiada e cada vez mais dissociada do processo decisório. Um secretário geral saudou um futuro em que ‘os associados não vão aos encontros nos sindicato, mas apenas carregam um cartão eletrônico, com toda a informação de que precisam saber; tudo o que tenha a ver com sua profissão, com acesso também a uma linha direta”[6]

Em um voo de avião supersônico sobre a questão da crise sindical, identificamos quatro problemas fundamentais do sindicalismo, um alimentando o outro, quais sejam:

1º) Afastamento dos integrantes das categorias do sindicato, pelos motivos já elencados, em resumo, claro que existem muitos outros.

2º) Manutenção de diretorias que subsistem, indefinidamente, pelo desinteresse da base pelo sindicato.

3º) Visualização do sindicato como uma empresa prestadora de serviços.

4º) As diretorias passam a encarar os associados, que desejam participar dos trabalhos sindicais, como inimigos a serem combatidos e isolados, como vírus indesejáveis, que devem ser mantidos em “isolamento social”, o que determina mais afastamento e aí temos um círculo vicioso interminável.

 

QUAL O SINDICATO QUE QUEREMOS?

 

Qual o sindicato que todos nós queremos? Antes de mais nada, um sindicato que seja o que deve ser, uma associação profissional de pessoas imbuídas dos mesmos interesses comuns, dispostas a participar na elaboração de uma pauta comum, que depois de estabelecida seja defendida por todos. Um sindicato que tenha como norma fundamental que um mundo mais justo e fraterno depende um pouco de cada um de nós. Para manter esta agenda deve tentar de todas as formas de incorporar, com democracia, todos os integrantes da categoria representada. É um trabalho hercúleo, contudo, absolutamente necessário para a sobrevivência das diversas categorias, unidas num objetivo comum de NAÇÃO. Em uma palavra, temos que ter simetria bimodal, unidade interna para termos condições de ação externa.

Os interesses dentro de um governo e de um parlamento, são divergentes, vários grupos lutam por hegemonia, porém nos sindicatos todos tem um só objetivo, a melhoria de vida e condições de trabalho da categoria, claro que não isolada do todo, porém se sentindo parte integrante deste todo. Como decorrência, não podemos dentro do sindicato, ter os mesmos conflitos que encontramos na política, lembrando que a atividade sindical não está dissociada da política.

Segundo o filósofo grego Aristóteles, a política é aquela ciência prática cujo fim é “o bem propriamente humano” e esse fim é o bem comum. Por isso a política é a ciência prática arquitetônica, isto é, aquela que estrutura as ações e as produções humanas. O homem é um animal naturalmente político (zóon poliktikon), ou seja, é da natureza humana buscar a vida em comunidade e, portanto, a política não é por convenção (nómos), mas por natureza (phYsei).[7]

O homem é um animal político ou naturalmente, político porque é um ser que busca a comunidade como o lugar em que, com os seus semelhantes, alcança completude. Se fosse o homem sem carências, seria um deus e não precisaria da vida comunitária; se fosse uma besta selvagem nem sequer sentiria a falta de outros. Por não ser um deus nem uma besta feroz, o homem é um animal político. Além disso, como explica Aristóteles, “a natureza nada faz em vão” e se deu ao homem a linguagem não foi apenas para comunicar sentimentos de prazer e dor (como a maioria dos animais), mas para exprimir em comum a percepção do bom e do mau, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, ou seja, para exprimir em comum a percepção dos valores.[8]

No artigo “Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo” o Professor César Augusto Ramos[9] escreveu que:

”O pensamento de Aristóteles representa uma notável contribuição à filosofia política no que diz respeito à qualificação do homem como um ser que realiza os seus mais altos fins na relação indissociável com a comunidade (polis) na efetivação de um bem comum. Tal perspectiva orientou um modo quase programático de pensar a ação humana na matriz comunitária, repercutindo no chamado comunitarismo contemporâneo em contraste com o individualismo liberal.1 Este último concebe a comunidade como uma associação composta por indivíduos que possuem suas próprias e independentes concepções em relação a um bem comum que, eventualmente, a comunidade poderia professar como essencial para o viver humano”.

Ainda que na contramão do neoliberalismo, queremos um  sindicato que se reorganize e resista para subsistir em nome da sobrevivência da categoria profissional de seus associados, o que será possível tendo por base os princípios da simetria bimodal para o qual Galbraith afirma “a organização só obtém submissão externa ao seus propósitos quando conquista uma submissão interna. A força e confiabilidade do seu poder dependem da profundidade e da firmeza da submissão interna”[10]

Este é princípio básico das Relações Públicas: primeiro internamente e somente depois que “casa estiver arrumada”, externamente[11], razão pela qual, repisamos, a necessidade de uma reestruturação na entidade sindical de modo a praticar o comunitarismo de Aristóteles, em detrimento ao laissez-faire do liberalismo.

Ou partimos para um sindicato que se reformule e traga suas bases para uma democracia interna participativa ou estaremos fadados a depois de ter nadado por tantos anos, morrer, talvez antes de chegar a terra firme. Somente a comunhão pode nos salvar. O grande educador Paulo Freire nos ensina: “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão”

 

 *Carmem Cenira Pinto Lourena Melo é auditora fiscal do trabalho aposentada, advogada e escritora,  e pós graduada em  Economia do Trabalho e Sindicalismo pela UNICAMP, 2011

** José Claudio Magalhães Gomes é auditor fiscal do trabalho aposentado e advogado

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[1] Gailbraith, John Kenneth, A ANATOMIA DO PODER, Edições 70, LDA. Lisboa, pag. 80/81

[2] APLICAÇÕES SOCIAIS DA SOLIDARIEDADE, citado por H.H. Barbagelata, em A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO DO DIREITO DO TRABALHO, LTr Editora, São Paulo, 2012, pag. 65

[3] McIlroy, John em Neoliberalismo, Trabalho e Sindicatos Reestruturação Produtiva no Brasil e Inglaterra. Boitempo Editorial, 1997, São Paulo.

[4] Sennett, Richard, A corrosão do Caráter, Editora Record, São Paulo, 1999).

[5]   Idem, Ibidem, pág 129

[6] McIlroy, John em Neoliberalismo, Trabalho e Sindicatos Reestruturação Produtiva no Brasil e Inglaterra. Boitempo Editorial, 1997, São Paulo, págs. 56/57

[7] Chauí, Marilena, Introdução à História da Filosofia: Dos Pré-socráticos a Aristóteles, volume 1-2. ed., rev. e ampl., São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

[8] Idem, ibidem

[9] https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2014000100004&script=sci_arttext&tlng=pt

[10] Galbraith J.K. Anatomia do Poder, São Paulo, Pioneira, 1984, págs. 59-60

[11] https://books.google.com.br/books?id=WQ5dmRCkbDYC&pg=PA108&lpg=PA108&dq=simetria+bimodal&source=bl&ots=DSvEmY3rRH&sig=ACfU3U1kVutuJneXEcCO_-fltLfWYruwGQ&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwi6qP3__Y3rAhXsJrkGHedcCHMQ6AEwD3oECAoQAQ#v=onepage&q=simetria%20bimodal&f=false

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