Revista Época – 08/02/2019
O relato é de Mário Parreiras de Faria, auditor fiscal do Trabalho. Ele acompanha rompimentos de barragens desde 1987, quando ocorreu o desastre em Itabirito-MG, que matou cinco trabalhadores.
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Há 35 anos trabalho no setor mineral, como auditor fiscal do Trabalho em Minas Gerais. Eu estava em casa com minha mulher, de férias, fazendo as malas para passar uns cinco dias em Serra do Cipó, quando meu chefe me ligou, por volta das 16 horas da sexta-feira: “Mário, Córrego do Feijão rompeu, já chegamos aqui, está uma loucura, acho que vou ter de suspender suas férias”. No dia seguinte, com mais dois auditores, partimos para lá. Eu sabia que a coisa era grande, com 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Sabíamos que não era igual a Samarco, pois havia instalações de trabalhadores embaixo. Eu sabia disso, todos sabíamos.
Passa um filme muito ruim em minha cabeça. Na terça-feira, voltamos com mais colegas. São dez auditores investigando o caso. Todas as mortes de trabalhadores são investigadas pelo setor de segurança e saúde do (antigo ) Ministério do Trabalho. Quando chegamos, o bombeiro tinha acabado de tirar um corpo da lama. Os bombeiros são sensacionais, ficaram 72 horas sem dormir, quase interditei um deles. Dei um abraço e falei: “Vou te interditar”. Foi quando começamos a ver helicópteros carregando corpos.
Estive em quase todos os últimos rompimentos de barragem. Em 2001, na mina São Rio Verde, em Itabirito, morreram cinco trabalhadores, todos terceirizados: dois foram encontrados boiando, um nunca foi achado, os outros dois foram achados depois. Em 2014, também em Itabirito, morreram três trabalhadores. Em Córrego do Feijão, ainda estão contando os mortos.
Quando se rompeu a barragem em Itabirito, disse para mim mesmo: “Não quero ver isso mais nunca”. Mas depois veio Mariana, Mariana, não, a Samarco. A pobre da cidade ficou com o estigma. Encontrei (em Brumadinho) os mesmos bombeiros que atuaram na Samarco, que também tinha encontrado em Itabirito.
É muito triste. Foi um acidente de trabalho ampliado, decorrente do trabalho que extrapola os limites da empresa. Não é um desastre ambiental, não estou minimizando os danos ambientais, mas o que houve foi um acidente de trabalho. Morreram trabalhadores da Vale, terceirizados e de outras áreas, como os da pousada.
Os trabalhadores que sobreviveram, depois da Samarco, ficaram com problemas de insônia, pediram demissão, dizendo que não trabalhavam em mina nunca mais na vida. A região fica abalada, principalmente por ser um estado que depende da mineração, fundado na mineração.
Fui médico cirurgião, atendi muita emergência também. Comecei no ministério em 1984, em 1987 houve o rompimento da barragem da mina de Fernandinho, em que sete trabalhadores morreram. Depois, fui estudar mineração, principalmente as minas subterrâneas. Chegamos a paralisar a mina de ouro mais profunda da América Latina na época, que produzia boa quantidade do ouro do Brasil. Na mineração, a taxa de mortalidade é maior do que em qualquer outro setor no Brasil e quatro vezes maior que a média: são 27 mortes a cada grupo de 100 mil empregados diretos. Na média, são seis mortes por 100 mil. A mineração mata muito mais.
Não são só as mortes. Os trabalhadores desenvolvem problemas respiratórios, a jornada de trabalho é muito pesada, ininterrupta, com rotação de jornada (mudança de turno a cada dois dias) . Muitos acidentes na mineração acontecem quando o trabalhador está fazendo hora extra. Já analisei acidente no qual o empregado havia trabalhado 11 horas por dia por três meses seguidos. São jornadas extensas, carregamento de peso, vibração, dor lombar, uma série de problemas osteomusculares.
Nos acidentes maiores, o que a gente vê é que eles podem ser prevenidos. Sistemas mais complexos dão sinal. Por que esses sinais, que vêm sendo dados ao longo do sistema, não são considerados pela organização? Chamamos isso de acidente organizacional incubado. Há sinais precursores, mas, muitas vezes, na gestão, são considerados fracos, não se valorizam esses pequenos sinais.
A metodologia para garantir a segurança de barragens é atual, mas pode ser atualizada novamente. Principalmente os fatores de segurança têm de ser mais rígidos. Em relação às exigências da legislação, nas normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), nas publicações, o fator de segurança parece ser bom. Mas estamos vendo que não é, as coisas estão caindo, estão ruindo. Se as pessoas não conseguem enxergar esses sinais, a metodologia de avaliação tem de evoluir, o rigor dos parâmetros utilizados precisa aumentar. O que houve de errado em Brumadinho foi não serem considerados os sinais que foram dados.
Barragens de rejeitos por alteamento é o método mais barato, mas é perigoso, com maior potencial de danos e o mais usado em Minas Gerais. O método é mais sujeito à liquefação. Pelo que vimos, houve liquefação na parte inferior da barragem, ela descalçou e desabou. A mina estava parada, beneficiando minério de outras minas, não entrou em nosso radar. Temos pouca gente. Dos 20 fiscais de segurança e saúde em Belo Horizonte, oito já podem se aposentar amanhã. São 40 fiscais de segurança e saúde para fiscalizar o estado inteiro.
Todo mundo fica abalado com esses acidentes. Quando cheguei em casa e contei o que vi para minha mulher, chorei um pouco. Você chora, é isso, chora e vai trabalhar.