sexta-feira, 31 outubro, 2025
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41º ENAFIT: Devida diligência nas cadeias de produção — o que a Europa ensina à Inspeção do Trabalho brasileira e o que o Brasil pode ensinar à Europa

Por: Lourdes Marinho/Edição: Andrea Bochi

A experiência europeia inaugurada em 2017, com a aprovação da primeira Lei Francesa do Dever de Vigilância, foi apresentada no 41º Encontro Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (ENAFIT), nesta quarta-feira, 29 de outubro. O diretor do SINAIT, o Auditor-Fiscal, Renato Bignami, coordenou o painel.

A pesquisa de doutorado do diretor do SINAIT e Auditor-Fiscal do Trabalho Lucas Reis, desenvolvida na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, mostra como a devida diligência responsabiliza grandes empresas por violações em toda a cadeia de produção — da extração da matéria-prima ao produto final — e aponta esse modelo como referência para uma legislação nacional que se impõe ao Brasil diante das cadeias globais. 

A legislação francesa estabelece obrigações a empresas com sede na França e mais de 5 mil empregados, e também aquelas com sede fora do país, mas que atuam em território francês, com mais de 10 mil empregados. Essas companhias devem elaborar e implementar um plano de vigilância que cubra toda a cadeia de produção. “A inovação está na responsabilização: a empresa matriz pode responder por violações de direitos humanos e trabalhistas em qualquer elo da cadeia”, diz o Auditor.

Segundo Lucas Reis, a lei francesa impulsionou outras iniciativas na Europa: a Lei Holandesa (2019), mais restrita e focada no combate ao trabalho infantil; a Lei Alemã (2021), considerada mais protetiva que a francesa; e a Diretiva Europeia aprovada em 25 de julho de 2024, que obriga todos os Estados-membros da União Europeia a instituírem legislações de devida diligência até 26 de julho de 2026.

Aspectos positivos e negativos da lei francesa

Dois pontos são decisivos para o avanço da proteção trabalhista. O primeiro é a extraterritorialidade, que permite responsabilizar empresas francesas por violações ocorridas em qualquer parte do mundo. “Em 2022, por exemplo, a Yves Rocher foi processada na França por práticas discriminatórias e problemas de segurança do trabalho em subsidiárias na Turquia”, disse Reis. O segundo é a responsabilização para além da subordinação: “a lei supera a noção de vínculo empregatício direto. Um caso emblemático é o do Grupo Carrefour, processado por desmatamento e trabalho escravo contemporâneo na cadeia de produção de carne na Amazônia, na divisa entre Brasil e Colômbia. Os trabalhadores não eram empregados diretos do Carrefour, mas a empresa foi acionada judicialmente”, contou.

De acordo com o Auditor-Fiscal, apesar dos avanços, as primeiras legislações europeias enfrentam entraves que reduzem sua efetividade. O escopo excessivamente amplo — ao tratar “direitos humanos” de forma genérica — transforma planos de vigilância em documentos extensos e difusos, difíceis de executar e fiscalizar. “Faltam foco, metas verificáveis e prioridades claras, o que compromete resultados.”

Outra barreira é a ausência da Inspeção do Trabalho como órgão responsável pela fiscalização. “Nem a lei francesa, nem a alemã, tampouco a diretiva europeia, atribuem ao Estado esse protagonismo. Com isso, a execução recai sobre sindicatos e entidades da sociedade civil, que não têm acesso a documentos internos e informações sensíveis das empresas. O efeito direto são processos com provas frágeis, o que reduz as chances de responsabilização e afasta a prática da letra da lei”, avaliou.

Há, ainda, falhas de desenho regulatório. O critério de enquadramento pelo número de empregados — patamares como 5 mil, 10 mil, 1 mil ou 3 mil — exclui grandes plataformas digitais que faturam bilhões, mas mantêm poucos ou nenhum empregado direto, como Uber e Spotify, criando um “buraco regulatório” em segmentos com alto poder de impacto nas cadeias globais.

O resultado dessa combinação é a baixa efetividade: em oito anos de vigência da lei francesa, houve apenas uma condenação. Em 2024, a La Poste — os correios franceses — foi condenada por tolerar a superexploração de trabalhadores estrangeiros sem documentação por subsidiárias, em razão de falhas no plano de vigilância. “Sem foco normativo, sem inspeção estatal com poder de polícia e com critérios de alcance que deixam de fora atores relevantes, a devida diligência corre o risco de permanecer como obrigação formal, não como instrumento real de proteção ao trabalho”, avalia o Auditor.

O papel fraco da inspeção do trabalho na Europa

O estudo mostra que, na França, a discussão sobre a devida diligência foi liderada por sindicatos, não pela Inspeção do Trabalho. A disputa de espaço resultou na ausência da inspeção como órgão fiscalizador. A consequência é que a fiscalização recai sobre entidades civis, sem o poder de acesso e a capacidade de produção de provas robustas que o Estado detém. “Em contraste, no Brasil, a Inspeção do Trabalho tem tradição, capilaridade e instrumentos para cumprir esse papel com mais efetividade”, atesta Lucas Reis.

Lições para o Brasil e Europa

De acordo com Lucas Reis, a experiência europeia oferece caminhos claros para uma futura legislação brasileira. “Há uma urgência objetiva: uma lei nacional de devida diligência é necessidade que se impõe à Inspeção do Trabalho. É fundamental que os Auditores-Fiscais do Trabalho protagonizem a discussão, para assegurar que a fiscalização e a aplicação da norma sejam de competência estatal.”

Para garantir efetividade, o escopo, segundo ele, deve ser inicial e prioritariamente trabalhista, orientado pelos cinco princípios fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O critério de abrangência deve considerar o faturamento das empresas — e não o número de empregados — para incluir plataformas digitais e grandes cadeias com estruturas enxutas. “O Estado, por meio da Inspeção do Trabalho, precisa ser o órgão fiscalizador, assegurando acesso a informações, robustez probatória e coerência com instrumentos já fiscalizados, como PGR e PCMSO”, declara.

Para Lucas Reis, uma Inspeção do Trabalho brasileira forte, independente e proativa pode, inclusive, dar lições à Europa sobre como construir uma lei eficaz. “A defesa dos direitos dos trabalhadores, especialmente os mais vulneráveis, diante de cadeias globais complexas, exige essa evolução da capacidade de atuação do Estado”, finalizou.

O que ensejou a lei francesa

Em 2013, o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, chocou o mundo e se tornou um dos acidentes de trabalho mais graves da contemporaneidade. Mais de 3.500 trabalhadores — muitos ligados a gigantes do setor têxtil — foram afetados, com mais de 1.100 mortes. A ausência de mecanismos capazes de responsabilizar essas grandes empresas pela tragédia impulsionou uma forte mobilização da sociedade civil francesa e de sindicatos, especialmente da CGT (Confédération Générale du Travail). O resultado foi a aprovação, em 2017, da Lei Francesa do Dever de Vigilância, marco que inaugurou a agenda europeia de devida diligência.

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