Dois dias de debates e apresentações marcaram o décimo aniversário do Pacto Contra o Trabalho Escravo na cadeia produtiva das confecções. Entre novas propostas, pediu-se um cadastro dinâmico — e aberto — de fornecedores.
Os 10 anos de assinatura do Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo ( na cadeia produtiva das confecções na cidade) foram recordados em evento comemorativo nos últimos dias 1 e 2 de dezembro. A jornada contou com palestras, apresentações e debates no auditório da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, envolvendo autoridades e representantes de empresas, da academia e da sociedade civil.
O compromisso
Resultado dos esforços e debates entre sociedade civil, sindicatos, políticos e instituições públicas, o pacto foi firmado no dia 24 de julho de 2009 — na esteira de ações do grupo de trabalho “Dignidade para o trabalhador migrante”. Criado mais como uma ferramenta de diálogo interinstitucional do que como um documento legal, a assinatura do pacto foi um marco. Tornou-se referência na luta pela conscientização da sociedade sobre o problema, sua devida fiscalização e a responsabilização das marcas de roupa sobre as condições de trabalho em suas próprias cadeias produtivas.
“Fomos pioneiros. Não existe algo como o pacto ou outro trabalho desse tipo em nenhum lugar por onde já passei”, ressaltou Renato Bignami, auditor fiscal do Trabalho.
Iluminando o problema — antecedentes
Três anos antes da assinatura do pacto, uma onda de reportagens trouxe à tona a realidade dos costureiros e costureiras que viviam e trabalhavam em confecções pela cidade de São Paulo. Marginalizados, a própria vida desses profissionais — especialmente as imigrantes — se confundia com as jornadas exaustivas e as condições degradantes a que eram submetidos nesses estabelecimentos.
Muitos dos costureiros que foram e são vítimas de trabalho escravo na região metropolitana de São Paulo foram previamente vítimas do tráfico de pessoas. Aliciados ainda em seus países de origem — especialmente de nações vizinhas como a Bolívia e Peru — esses trabalhadores são enganados com falsas promessas de trabalho e acabam se endividando com seus aliciadores, os “gatos”.
Chegando em São Paulo, começam o trabalho nas confecções clandestinas com o peso das dívidas acumuladas com a passagem, acomodação e alimentação sendo descontado de seus salários. Situações como essa se enquadram no conceito de servidão por dívida, um dos aspectos mais comuns do trabalho escravo contemporâneo.
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Diante da gravidade do problema, foi instaurada em 2005 uma comissão parlamentar investigativa (CPI) para apurar a exploração de trabalho análogo à escravidão na Câmara Municipal de São Paulo.
Foi estimado, na época das denúncias de trabalho escravo que levaram à CPI, que mais de 60 mil trabalhadores e trabalhadoras bolivianos em situação migratória irregular trabalhavam nesse sistema de trabalho análogo à escravidão.
A vereadora Soninha Francine (Cidadania-SP), que foi a relatora dessa comissão parlamentar, foi ao primeiro dia de debates da jornada comemorativa. “Olhando para trás e levando em conta o que trouxemos à mesa naquela CPI, penso que nossa principal contribuição para o combate ao trabalho análogo à de escravos nas confecções foi nosso empenho em trazer a atenção de diversos atores para esse problema. Juntar na mesma sala representantes do MPT, do (extinto) Ministério do Trabalho, fiscais, jornalistas e tantos outros.”, disse a vereadora à Repórter Brasil.
Nesses dois anos de CPI “propiciamos um lugar de trocas de experiências, discussões… Enfim acho que demos um primeiro passo para tirar esse tema da obscuridade”, concluiu a vereadora.
Conquistas
Em agosto de 2010, duas trabalhadoras bolivianas foram libertadas após fiscalização em confecções que forneciam peças para a marca 775. Foi a primeira ação de resgate de trabalhadores submetidos a trabalho análogo ao de escravos no ambiente urbano no Brasil.
“Nos jogamos numa ‘selva de pedra’ sem mapa ou guia — empenhados em ir atrás dessas trabalhadoras e trabalhadores”, lembrou Vera Jatobá, diretora do Sinait, durante uma das mesas de debate.
Desde a primeira operação, mais 318 trabalhadoras e trabalhadores foram resgatados de confecções na cidade de São Paulo. “Na época, as ações e abordagens eram realizadas em cima da questão migratória, somente, e não dos direitos fundamentais do trabalho”, pontuou Renato Bignami.
Trabalho análogo à escravidão foi encontrado em mais de 40 grifes nessa década de pacto. Desde fornecedores diretos até cadeias de fornecedores terceirizadas que se escondiam detrás das peças não etiquetadas que vendiam. Uma lista mais detalhada das fiscalizações e marcas da moda flagradas pode ser vista aqui: As marcas da moda flagradas com trabalho escravo.
Veja também: Aplicativo monitora marcas flagradas com trabalho escravo e facilita o consumo consciente Moda Livre
Para os auditores fiscais do trabalho, o desafio agora é enfrentar o trabalho análogo à escravidão como um problema na cadeia produtiva da moda — do algodão à roupa etiquetada nas araras do varejo.
A antiga abordagem, focada na nacionalidade das vítimas, não compreendia a complexidade por trás da teia de terceirizações na indústria da moda e, por vezes, criminalizava a vítima por sua situação migratória irregular no país. Isso, foi parcialmente solucionado ainda em 2011, quando a Secretaria de Inspeção do Trabalho estendeu a Resolução Normativa 93 aos imigrantes, estejam eles em condições irregulares ou regulares no Brasil. Decisão que forneceu uma maior segurança às vítimas imigrantes do trabalho escravo contemporâneo.
Estigmatizar um grupo de migrantes é falho ‘até porque, os oficineiros que submetem seus funcionários às condições degradantes, que tanto discutimos, sempre estão um passo à frente de nós. Eles buscam o grupo mais vulnerável no momento: sejam bolivianos, peruanos, nordestinas…”, explicou Eunice Cabral, presidente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco.
A iniciativa das grifes
Depois da assinatura do pacto entidades de classe do varejo e da indústria têxtil se uniram para criar programas e soluções próprias. A Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), presente nas jornadas comemorativas dos 10 anos de pacto, lançou ainda em 2010, o “Programa ABVTEX”. Concentrado em certificar a cadeia de fornecedores, o programa criou um esquema de compliance usando auditorias privadas para penalizar ou eliminar confecções que não sigam os padrões de qualidade ditados pela associação. Desde 2010, mais de 36 mil auditorias foram realizadas pela associação.
Para Edmundo Lima, diretor executivo e porta-voz da ABVTEX, “O desafio agora é fomentar a formalização das cadeias que incorporam a rede certificada da ABVTEX”.
Em uma cadeia tão fragmentada a relevante maioria de confecções é de pequeno porte ou, mesmo, MEIs (Micro Empresários Individuais). Essa natureza atomizada e desagregada da produção “dá uma grande margem para informalidade”, ressaltou Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). “Não queremos mais empresas, isso já temos até demais. Queremos empresas maiores em nossa cadeia produtiva”, concluiu ele.
Críticas
Exposto pela pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina Katiuscia Galhera, o programa da ABVTEX de “cut and run” (cortar relações com fornecedores e “correr”/fugir) foi criticado por não trazer uma responsabilização direta as cerca de 90 marcas associadas e servir apenas de garantia para “o bom nome” das grifes.
“Há casos em que a associação corta relações preventivamente com algum fornecedor e, por pura precaução, — infundada em provas — acaba tirando a fonte de renda de muitas trabalhadoras e suas famílias”, explica o auditor-fiscal do trabalho Luís Alexandre de Faria.
“A imensa maioria dos fornecedores certificados, por exemplo, são confecções sem funcionários imigrantes, por exemplo. Essa ‘cautela’ da ABVTEX acaba prejudicando e estimulando a informalidade justamente entre os grupos mais vulneráveis”, criticou a também auditora-fiscal do trabalho Lívia Ferreira. “É um esforço bem importante, porém”, observou ela. “São as marcas tomando responsabilidade por suas cadeias de produção.”
Em contrapartida, para a representante do Ministério Público do Trabalho no debate, procuradora do Trabalho Andréa Tertuliano de Oliveira, as iniciativas empresariais não trazem nenhum resultado real. “É como os selos do agronegócio. Empresários dando tapinhas nas costas deles mesmos”. Os programas da ABVTEX são “apenas retórica”, sintetizou a procuradora.
O que faremos?
O futuro do combate ao trabalho escravo na indústria da moda, têxtil, varejo — toda a cadeia produtiva — foi tema da maior parte das mesas de debate nas jornadas comemorativas dos 10 anos de pacto. Mais transparência e cooperação entre as entidades que formam o pacto foi o pedido unânime. Uma das metas propostas foi justamente a de um possível cadastro dinâmico — e aberto — de fornecedores. Sistema que abrangeria tanto os dados do poder público quanto os levantados pelas iniciativas privadas.
O evento foi fruto da organização de diversas entidades: o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), a Repórter Brasil, a Defensoria Pública da União, o Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), a Secretaria de Inspeção do Trabalho, o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO), a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) e pela Missão Paz, instituição que também fez a transmissão ao vivo do auditório.