quinta-feira, 25 abril, 2024
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Com base em relatório da Inspeção, TRF3 condena duas pessoas por escravizar imigrantes em oficina de costura

Por Dâmares Vaz/Edição: Andrea Bochi

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) condenou, em 10 de fevereiro, duas pessoas por manter estrangeiros em condições análogas à escravidão em uma oficina de costura em São Paulo (SP), entre outubro de 2018 e julho de 2019, pelo menos. A sentença, da juíza federal Substituta Andréia Moruzzi, foi solidamente fundamentada pelo relatório da equipe de Auditores-Fiscais do Trabalho do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo.

Para a magistrada, “a materialidade e autoria delitivas do crime previsto no artigo 149, caput e §2º, inciso I, do Código Penal, mostram-se absolutamente induvidosas, especialmente pelo (i) “Relatório de Fiscalização Erradicação do Trabalho Escravo”, elaborado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo; (ii) depoimentos prestados em Juízo pelas vítimas, que confirmaram que trabalhavam e moravam no local indicado no referido relatório, e que foram submetidas a trabalho em condições análogas à de escravo e à servidão, após serem aliciadas e alojadas, mediante fraude e/ou abuso, e (iii) depoimentos judiciais das demais testemunhas”.

A juíza também afirma: “em que pese os depoimentos de parte dos trabalhadores, é certo que o relatório elaborado por Auditores-Ficais do Trabalho, servidores que gozam de fé pública, deixou claro que a situação in loco era aviltante e que todo o contexto do local apontava se tratar de exploração de trabalhadores e submissão à condição análoga à de escravos, já que havia trabalho e moradia degradantes e jornada exaustiva, que esgotava as capacidades dos trabalhadores. Ainda, os elementos apurados foram confirmados por prova documental, inclusive a questão da quantidade produzida versus hora de trabalho, constatando-se a jornada extrema a que eram submetidos, conforme relatado judicialmente pelo Auditor-Fiscal Luiz Alexandre de Faria”. Faria conduziu a fiscalização juntamente com os Auditores Renato Bignami e Lívia dos Santos Ferreira.

Um dos réus é a proprietária de duas marcas de roupas – Anchor e Tova, vinculadas às confecções Anchor e MNJ – que terceirizava a produção para a oficina de costura. A sentença impôs a ela pena de três anos de prisão, substituída por prestação de serviços comunitários e pagamento de 20 salários mínimos.

O outro réu é o dono da oficina, localizada no Jardim de Lorenzo, bairro da zona leste de São Paulo. Ele foi condenado a sete anos de reclusão, em regime inicial semiaberto. A pena considera não só a submissão dos trabalhadores a condições degradantes, mas também o aliciamento das vítimas, que o microempresário recrutava principalmente no Peru, seu país de origem. O emprego de dois adolescentes na produção das peças também elevou as sanções aplicadas a ambos os réus. Eles poderão recorrer da sentença em liberdade.

A ação fiscal teve início a partir de denúncia de desaparecimento feita por familiar dos adolescentes à Polícia Nacional do Peru, que levou o caso ao Consulado do Peru no Brasil. O consulado então informou à Coordenadoria do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae/SP), que a família das vítimas tomou conhecimento de que o casal estava no Brasil depois de ter sido captado na cidade peruana de Juliaca/Puno, pelo dono da oficina, que lhes teria prometido trabalho em uma oficina de confecções em troca de uma boa quantia de dinheiro, alimentação, hospedagem e passagens pagas, mas teria deixado o casal à própria sorte depois de descontar os gastos e não pagar pelos serviços prestados, conforme combinado.

Diante dessas informações, em 19 de julho de 2019, foi realizada missão policial pela Polícia Federal na oficina de costura, e as fotos do local do trabalho tiradas durante tal diligência mostraram as instalações precárias, com fios espalhados na sala em que os costureiros trabalhavam e lixo espalhado pelo chão. A Superintendência Regional do Trabalho foi acabou notificada pelo Ministério Público Federal sobre uma denúncia recebida pelo Consulado Geral do Peru em São Paulo, noticiando o desaparecimento e provável tráfico de dois trabalhadores adolescentes peruanos. As vítimas foram encontradas no consulado, em segurança.

Além disso, conforme constou do relatório de auditoria de condições análogas às de escravo, tráfico internacional de pessoas e frustração de direito assegurado em lei trabalhista, foram registradas diversas e graves violações de direitos fundamentais no trabalho dos onze trabalhadores ali encontrados, todos imigrantes das nacionalidades boliviana e peruana, que trabalhavam como costureiros, produzindo com exclusividade e dependência econômica peças de vestuário das marcas citadas, em ambientes degradantes de trabalho e alojamento. Todo esse relato compõe a sentença.

Constatações da fiscalização trabalhista

“Foi constado que nenhum dos trabalhadores era registrado, não lhes eram garantidos nem mesmo os direitos trabalhistas mínimos correspondentes ao contrato de trabalho, como o piso salarial da categoria, o respeito ao limite legal das jornadas de trabalho e o recolhimento de FGTS e INSS”, afirmou a juíza.

Na oitiva dos trabalhadores resgatados, ficou claro o recrutamento ilícito de migrantes não nacionais, bem como a entrada irregular da adolescente em território nacional, sob a responsabilidade do dono da oficina.

Também na sentença foi registrado que os demais trabalhadores inicialmente relataram condições bastante precárias de trabalho, jornadas extensas de até 14 horas e pagamento ínfimo. “Não obstante, acerca das condições de segurança e saúde do meio ambiente de trabalho, foi afirmado no relatório em comento que na oficina de costura inspecionada tais condições eram inexistentes, indicando precariedade nos locais de trabalho e moradia, que se confundiam”, afirma a sentença.

O relatório da fiscalização destacou “que as instalações sanitárias não dispunham de material para limpeza, enxugo das mãos e papel higiênico; não havia local adequado para que os trabalhadores fizessem suas refeições com conforto e higiene, sendo que os botijões de gás se encontravam estocados dentro do ambiente fechado de moradia e trabalho, implicando risco de explosão e incêndio para todos; as polias das máquinas de costura estavam desprotegidas, implicando risco de escalpelamento, principalmente para as crianças que circulavam pelo ambiente de trabalho; as instalações elétricas eram precárias e improvisadas e não se encontravam em condições seguras de funcionamento; o portão de entrada era mantido trancado e não havia rotas de saída ou de fuga para casos de incêndio, muito comuns nessa atividade econômica”.

Quanto às condições ergonômicas de trabalho, o relatório apontou que os assentos utilizados pelos trabalhadores não atendiam aos requisitos mínimos de ergonomia estabelecidos na Norma Regulamentadora (NR) 17 e alguns trabalhadores relataram, durante a diligência, sintomas relacionados a doenças ocupacionais.

Oficinas sweatshops

Para a juíza, “salientou-se que a jornada exaustiva imposta a estes trabalhadores estava diretamente relacionada ao baixo valor pago pelas empresas Anchor e MNJ para cada peça costurada, quantia que era repassada para a oficina de costura, que, por sua vez, repassava aos trabalhadores, após ser efetuada retenção de cerca de 66% do valor pago por cada peça, a título de aluguel, alimentação, água, luz e demais despesas, além do lucro do oficinista, todas cobradas dos costureiros, segundo declarações tanto do oficinista quanto dos trabalhadores, prestadas espontaneamente no momento da inspeção no local de trabalho. Concluiu-se, portanto, que apenas com muitas horas de trabalho os trabalhadores imigrantes conseguiriam gerar renda suficiente para garantir as despesas com alimentação e moradia providas pelo dono da oficina, além da almejada sobra que, remetida à Bolívia e ao Peru e convertida em moeda local, poderia minimamente prover à subsistência de uma família”.

Além disso, a Auditoria Fiscal do Trabalho concluiu e a juíza acatou na sentença que “a pulverização da produção das peças de vestuário, por diversas oficinas, em processo produtivo que, conforme se demonstra no presente relatório, é controlado em todas as suas fases pela empresa Confecções Anchor Ltda. e MNJ Confecções Ltda., dificulta o controle e a fiscalização dessa atividade pelos órgãos públicos. A dificuldade de rastreamento contábil da produção facilita, assim, o mascaramento da teia de subcontratações sucessivas que leva à precarização das relações de trabalho. Tais oficinas sweatshops funcionam, na realidade, como células de produção da empresa unifamiliar MNJ/Anchor, todas interligadas em rede, simulando relação de ‘remessa/retorno de industrialização’ mediante emissão de notas fiscais; tais relações simuladas, na realidade, encobertam nítida relação de emprego entre todos os obreiros das oficinas e as empresas responsabilizadas”.

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