Por Andre Montanher
O jornalista Leonardo Sakamoto está lançando, pela Editora Contexto, o livro “Escravidão Contemporânea”, reunião de textos de especialistas acerca do tema. Entre as pessoas ouvidas pelo material, está o Auditor Fiscal do Trabalho, Renato Bignami, com ampla atuação relativa ao assunto.
Bignami escreve o capítulo “Todos os Países Escravizam: como funciona o trabalho escravo pelo mundo e o que é feito para combatê-lo”. Na entrevista ao Sinait-SP, ele fala sobre o contexto da obra, do capítulo, e seu histórico no combate ao trabalho escravo, junto à Superintendência do Trabalho de São Paulo.
A cerimônia de lançamento ocorre no dia 28 de janeiro, às 18h30, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, Piso Térreo, Vila Madalena).
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Sinait-SP – Como surgiu o convite para participação na obra?
Bignami – Já faz 10 anos que a Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo tem parceria com a ONG Repórter Brasil, sob a presidência de Sakamoto. A ONG tem histórico de produção de reportagens independentes e pesquisas sobre as cadeias produtivas, além do projeto “Escravo nem Pensar”, que leva educação para as crianças.
A parceria se iniciou mais ou menos no mesmo período, há cerca de 10 anos, quando firmamos o “Pacto contra o Trabalho Precário e pelo Trabalho Decente na Cadeia Produtiva das Confecções”, no município de São Paulo, e a Repórter Brasil naquela ocasião foi signatária. A entidade aderiu ao modelo que propusemos, no sentido de dar transparência às ações de fiscalização.
Leonardo Sakamoto sempre foi um jornalista combativo e sensível às questões relativas ao mundo do trabalho. Diante disso surgiu o convite.
Sinait-SP – Qual a perspectiva adotada sobre o tema para o seu capítulo? Como pensou em delimitar este tema tão vasto?
Bignami – Estamos diante de um processo bastante sólido da globalização, que ocorre também pelo lado da precariedade trabalhista. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) aponta que o trabalho escravo existe em todo o mundo, e que deve existir uma luta global contra ele, com base nos tratados internacionais, particularizando para algumas nações selecionadas que saíram adiante.
Parti da análise do tema da promoção de trabalho decente em cadeias produtivas inspirado pela forma pioneira pela qual atuamos aqui em São Paulo, desde 2010, passando, mais adiante no capítulo, pela legislação francesa e norte-americana (a Lei de Transparência californiana), além das legislações holandesa – que trata da responsabilidade das cadeias produtivas pelo trabalho infantil -, e a australiana, recentemente editada.
Aos poucos a gente vai observando uma tendência mundial nesse sentido. Focar esta perspectiva foi meu objetivo, para que o leitor brasileiro tivesse acesso ao que há de mais atual em outras nações do mundo no que diz respeito ao combate ao trabalho escravo e à responsabilização no âmbito das cadeias produtivas. Como se pode ver, são todas nações bastante desenvolvidas, com economia de mercado sólidas, o que comprova a necessidade de também estabelecermos padrões ainda mais robustos de responsabilidade nas cadeias de fornecimento. O passaporte do Brasil para o mundo desenvolvido, por exemplo para a OCDE (Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico), passa por tornar o Brasil um país mais responsável na proteção dos direitos fundamentais do trabalhador e no respeito ao direito internacional, buscando adequar-se ao que há de mais moderno, nas tendências legislativas apresentadas pelo mundo desenvolvido.
Sinait-SP – Qual a característica contemporânea da escravidão no brasil? O que mais lhe chama a atenção e a indignação?
Bignami – O Brasil não está isolado do mundo. A característica da escravidão no Brasil está bastante globalizada. Ao mesmo tempo, temos o traço local do nosso problema, que deve ser compreendido na história colonial. Os traços primitivos se misturam à característica da escravidão contemporânea, muito relacionada ao tráfico de pessoas, à violência psicológica, às ameaças e prisões invisíveis. Todo tipo de violência que os relatórios e autos de infração lavrados revelam, alguns, inclusive, responsabilizando grandes empresas.
O que choca mais é o quanto a mão de obra é barateada, tornada-a descartável. Se o trabalhador escravizado ameaçar reclamar, ele é substituído por outro de forma bastante simples. É o traço que mais choca, juntamente com os maus tratos e as condições degradantes, e as jornadas exaustivas.
A legislação brasileira tem um modelo que precisa seguir avançando nesse tópico. Aí é importante louvar o trabalho de todos os colegas Auditores-fiscais do Trabalho, que vêm documentando por meio dos inúmeros relatórios e milhares de autuações, as condições de precariedade encontradas de fato nos locais de trabalho, e sugerindo legislação que aprimore o enfrentamento a essa chaga.
Sinait-SP – Cite o trecho mais significativo do seu capitulo, na sua opinião.
Bignami – É quando eu trato das experiências legislativas dos países selecionados, para apresentar algo de novo aos leitores brasileiros. O que tem de novo é a busca de mais responsabilidade jurídica no âmbito da cadeia de fornecimento. Tradicionalmente, as grandes empresas vêm propondo a saída do Estado da questão, por meio da autorregulação. Infelizmente, a autorregulação tem se mostrado demasiadamente falha. Falha e cara, pois envolve auditorias privadas, desenvolvimento de sistemas, com resultados bastante pífios, que dão margem a situações sólidas e frequentes de violação de direitos fundamentais.
O capítulo mostrou a experiência destes países selecionados, que ampliam a regulação do Estado, por conseguinte ampliando também a responsabilidade das empresas que fazem parte de determinada cadeia produtiva. Isto traz efeito positivo em todo o mercado de trabalho, pois reforça o instituto da reparação e favorece o “fair play” entre todas as empresas de forma mais equânime. Pensamos que estas experiências poderiam inspirar os legisladores brasileiros.
Sinait-SP – Fale um pouco do seu histórico com o tema.
Bignami – Há 12 anos a Ana Palmira Arruda, então chefe de Fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo, e atual diretora do SINAIT me deu a oportunidade de me engajar no combate ao trabalho escravo. Ela me pediu para eu ajudar no âmbito de um grupo que ela tinha formado, denominado “Dignidade para o Trabalhador Migrante”, a partir das conclusões da CPI da Câmara Municipal de São Paulo sobre o trabalho escravo de imigrantes nas confecções da capital, de 2006.
Com as informações tiradas desta iniciativa, ela trouxe o debate para dentro da Inspeção do Trabalho, e me chamou para coordenar esse grupo. Com a evolução das discussões, entendemos que seria o caso de firmarmos um pacto público, e esse é o contexto que deu origem ao Pacto Municipal contra o Trabalho Precário e pelo Trabalho Decente no setor das Confecções.
No âmbito da Superintendência, nosso compromisso foi intensificarmos as fiscalizações, e foi assim que nasceu o Programa Estadual de Combate ao Trabalho Escravo em São Paulo, dando origem a uma atuação específica e peculiar, focada na promoção dos direitos fundamentais dos imigrantes. Anteriormente, a inspeção do trabalho sempre se deparou com a dificuldade de atuar com essa população, em virtude do risco da deportação, por se tratar, em sua maioria das vezes, de imigrante em situação migratória irregular. Esse fator, longe de ser empecilho para nossa atuação, tornou-se um desafio que nós superamos. Outro aspecto e foco da atuação do programa, foi a responsabilização da organização economicamente relevante dentro de determinada cadeia de fornecimento. Buscamos mecanismos sólidos, do ponto de vista jurídico e administrativo, para responsabilização das empresas, pelas violações dos direitos fundamentais.
É assim que se insere minha atuação nessa questão. A partir daí, venho estudando, publicando e procurando contribuir para que o debate sempre seja feito da forma mais franca possível, de maneira ampla e inclusiva. Acredito muito no diálogo social. Sem a participação de todos não há possibilidade de encontrarmos uma solução sustentável para esse problema.
Sinait-SP – Como poderemos, enfim, abolir a escravidão no Brasil?
Bignami – É uma questão extremamente complexa. Trabalho escravo existe desde que a humanidade se formou em sociedade, o trabalho livre é algo muito recente no nosso curso histórico.
Foi isso que nos inspirou no momento em que a gente propôs o pacto, priorizando a atividade da inspeção do trabalho de forma central nesse trabalho de enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil. É esse o foco que eu procurei dar também no capítulo a mim conferido pelo Leonardo Sakamoto, focando nos caminhos possíveis que a inspeção do trabalho poderá seguir no futuro quanto a esse tema. Assim, peço aos colegas que prestigiem o lançamento. Será um bonito evento. Abraço a todos.