sexta-feira, 11 outubro, 2024
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Portal JOTA – O (mau) combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil: Sinais de tragédias anunciadas

Guilherme Camargo de Oliveira*, Guilherme Guimarães Feliciano** e Paulo Roberto Lemgruber Ebert***

Publicado originalmente no portal Jota – acesse aqui.

Neste mês de março, tendo à vista tantos casos escandalosos de redução de trabalhadores brasileiros à condição análoga a de escravos – inclusive em fazendas associadas a selos célebres da vinicultura gaúcha, na colheita atacadista de arroz e até mesmo nas tradicionais culturas da cana-de-açúcar e do café –, reproduzindo realidades que acreditávamos remontarem ao Brasil Colônia e ao Brasil Império, com um aumento de resgatados de 37,8% em Minas Gerais em relação a 2021, o assunto não poderia ser outro: a escravidão contemporânea no Brasil do século 21. Ou, mais apropriadamente, as condições atuais de sua prevenção/repressão pelo poder público, a partir dos serviços de fiscalização. Tratamos do tema, aliás, em recente entrevista a jornal televisivo de retransmissora da TV Globo.

E vamos tratar novamente, agora neste espaço. Porque aí está, precisamente, o grande gargalo. Vejamos.

Vivemos hodiernamente um imenso déficit nos quadros da auditoria fiscal do trabalho, que tem sido objeto de sistemático desmonte há mais de duas décadas. Aliás, uma análise estatística rigorosa revelaria, com toda segurança, a proporcionalidade direta entre a redução dos quadros de auditores fiscais do trabalho e o aumento dos casos de trabalhadores brasileiros reduzidos à condição de escravizados, em todas as suas modalidades típicas (trabalho forçado, trabalho degradante, trabalho exaustivo, servidão por dívidas).

Nada obstante – mesmo sob o impacto desse déficit –, temos vivenciado um alarmante incremento do número de trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo. Os números impressionam. Mais de 900 trabalhadores resgatados no país apenas nos três primeiros meses de 2023[1]. Em fevereiro, na região Sul, uma única ação fiscal resgatou 207 trabalhadores em condições degradantes de trabalho na lavoura da uva[2]. Em março, outra ação fiscal flagrou 212 trabalhadores em condições degradantes de trabalho na cultura da cana-de-açúcar em Goiás e Minas Gerais[3].

O estado de São Paulo contribuiu com 32 trabalhadores resgatados em janeiro de 2023[4], sem contar o flagrante de mais de 200 trabalhadores encontrados sem registro (neste caso sem caracterização de condição análoga à de escravo) na lavoura da cana-de-açúcar na próspera região de Ribeirão Preto[5]. Aliás, a chaga do trabalho degradante alastra-se por todos os lugares, sem se limitar ao campo. No último dia 21, auditores fiscais do trabalho resgataram cinco trabalhadores em condição análoga à de escravo que haviam sido aliciados para os preparativos do festival Lollapalooza, em pleno autódromo de Interlagos, na capital paulista[6].

A condição de trabalho análogo ao de escravo é a hipótese extrema da exploração ilícita da mão de obra; é, por assim dizer, a consumação absoluta da mercantilização do ser humano, jogando pá-de-cal sobre a máxima que inspirou a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, e mais tarde a Declaração da Filadélfia, em 1944: o trabalho – tanto menos o ser humano que o realiza – não é mercadoria de comércio. Como em todo ilícito, ademais, alimenta-se da sensação de impunidade, acomoda-se e se alastra a partir do sentimento de que, embora cometido, o crime – tipificado no artigo 149 do Código Penal – não acarretará sanção alguma.

E é sob esse estarrecedor contexto que se vislumbra, em paralelo, a redução progressiva do número de auditores fiscais do trabalho em atividade no país, como vínhamos de apontar. Atualmente, apenas cerca de 55% dos cargos estão ocupados, com o menor número de auditores fiscais do trabalho na ativa em 28 anos[7]. A situação é alarmante, havendo regiões em que o número de servidores disponíveis para ações em campo e inspeções em empresas está reduzido a praticamente um quinto do quantitativo disponível há dez anos[8].

Já em 2020, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho divulgou nota pública elaborada pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que denunciava a grave carência de auditores e a necessidade de realização de concurso para provimento dos cargos vagos[9]. E a situação não melhorou desde então: o último concurso ocorreu em 2013, para preenchimento de apenas cem vagas.

O déficit de auditores fiscais do trabalho interessa, é claro, a quem desrespeita a legislação trabalhista. Com efeito, entre as atribuições da fiscalização estão não apenas o combate ao trabalho análogo ao de escravo, mas também a fiscalização do pagamento correto e tempestivo dos salários, o regular recolhimento de FGTS mensal e rescisório, o respeito aos limites de jornada e aos períodos mínimos de descanso, a concessão adequada das férias e o pagamento pontual e integral das verbas rescisórias, entre outras obrigações patronais típicas.

Também compete aos auditores a fiscalização do cumprimento das convenções e acordos coletivos de trabalho e das condições de segurança e saúde do trabalho, como a instalação das proteções coletivas (EPCs) e o fornecimento de equipamento de proteção individual (EPIs); aliás, bem se pode afirmar que os auditores fiscais do trabalho compõem a linha de frente da tutela pública do meio ambiente do trabalho equilibrado (CRFB, artigo 225, caput, c.c. artigo 200, VIII).

Especificamente quanto ao combate ao trabalho escravo contemporâneo, ademais, interessa recordar que os auditores fiscais do trabalho também têm atribuição administrativa para a fiscalização do trabalho doméstico – ponderando-se, no particular, a necessária atividade de polícia administrativa com a garantia fundamental da inviolabilidade domiciliar do empregador doméstico (CRFB, artigo 5º, XI) –, em cujo âmbito se têm noticiado casos de resgate de trabalho análogo ao de escravo, no âmbito residencial, com grande estrépito público[10].

Como é óbvio, a carência de servidores dificulta sobremaneira o alcance da fiscalização administrativa das condições de apropriação do trabalho humano. A base de dados estatísticos da Secretaria da Inspeção do Trabalho (RADAR)[11] indica, considerando apenas fiscalizações relativas ao meio ambiente do trabalho (i.e., saúde, segurança e higiene no trabalho), uma sensível diminuição no número de ações fiscais. Em 2018 foram 67.082 ações; mas o número vem caindo desde então, chegando, em 2022, a 34.286 fiscalizações. Logo, estamos diante de uma redução de nada menos do que aproximadamente 50% em relação a 2018.

O nefasto reflexo desse contexto é o incremento do número de acidentes de trabalho no país, ao longo dos últimos anos, conforme levantamento do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, órgão vinculado à OIT, e do Ministério Público do Trabalho (MPT)[12]. Perde, pois, o trabalhador brasileiro, em sua integridade física, mental e moral. Perde, ao fim e ao cabo, toda a sociedade brasileira.

É notória, ademais, a contramão histórico-universal em que estamos todos nos precipitando, porque o trágico contexto nacional contrasta com a tendência atual de valorização do meio ambiente de trabalho seguro e saudável. Como já dissemos por aqui, a 110ª Conferência Internacional do Trabalho, ocorrida em 2022, alçou a segurança e a saúde do trabalho à condição de direito fundamental do trabalho[13], ao lado da liberdade sindical – assunto em que também estamos a dever imensamente – e da negociação coletiva, da abolição efetiva do trabalho infantil, da eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação e da própria eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, consoante o artigo 2º, “a”, da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (1998).

O Brasil, porém, insiste em seguir na direção contrária, afastando-se de seus compromissos gerais, aos quais se sujeita como Estado-membro fundador da OIT – aliás, sede do primeiro escritório da entidade na América Latina (em 1950) –, como também de compromissos mais específicos, como aquele assumido com a ratificação da Convenção 81 da OIT, da qual deriva a obrigação internacional de manter em atividade um quantitativo suficiente de inspetores do trabalho.

Somos, em síntese, devedores universais. E, como nos nossos quotidianos domésticos, a conta um dia chega.

[1] https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/03/21/brasil-resgatou-918-vitimas-de-trabalho-escravo-em-2023-recorde-para-um-1o-trimestre-em-15-anos.ghtml. Acesso em: 21/03/2023.

[2] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/27/trabalhadores-resgatados-em-situacao-de-escravidao-no-rs-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-saber.ghtml. Acesso em: 21/03/2023.

[3] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/03/17/mais-de-200-trabalhadores-sao-resgatados-em-condicoes-analogas-a-escravidao-em-goias.ghtml. Acesso em: 21/03/2023.

[4] https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2023/02/02/fiscais-resgatam-32-trabalhadores-em-condicoes-analogas-a-escravidao-na-zona-rural-de-pirangi-sp.ghtml. Acesso em: 21/03/2023.

[5] https://globorural.globo.com/agricultura/cana/noticia/2023/03/fiscalizacao-flagra-mais-de-200-trabalhadores-sem-registro-no-plantio-da-cana-em-sp.ghtml. Acesso em: 21/03/2023.

[6] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/reporter-brasil/2023/03/23/exclusivo-lollapalooza-e-flagrado-com-trabalhadores-escravizados-em-sp.htm. Acesso em: 23/03/2023.

[7] https://www.sinait.org.br/site/noticia-view/?id=20671/folha%20de%20sao%20paulo%20denuncia%20que%20a%20fiscalizacao%20do%20trabalho%20tem%20mais%2045%%20dos%20cargos%20vagos. Acesso em: 21/03/2023.

[8] https://www.sinait.org.br/site/noticia-view?id=20678/eptv%20expoe%20deficit%20de%20auditores-fiscais%20do%20trabalho%20nas%20regioes%20de%20campinas%20e%20piracicaba,%20no%20estado%20de%20sao%20paulo. Acesso em: 21/03/2023.

[9] https://sinait.org.br/docs/nota_publica_concurso_auditor_fiscal_do_trabalho.pdf. Acesso em 21/03/2023.

[10] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/06/30/domestica-e-resgatada-apos-passar-43-anos-em-condicoes-analogas-a-escravidao-diziam-que-era-da-familia-diz-procurador.ghtml. Acesso em 21/03/2023.

[11] https://sit.trabalho.gov.br/radar/. Acesso em 21/03/2023.

[12] https://brasil.un.org/pt-br/178950-acidentes-de-trabalho-e-mortes-acident%C3%A1rias-voltam-crescer-no-brasil-em-2021. Acesso em 21/03/2023.

[13] https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_848148/lang–pt/index.htm. Acesso em 21/03/2023.

 

*Guilherme Camargo de Oliveira – Auditor-Fiscal do Trabalho em São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão “O Trabalho além do Direito do Trabalho” (FDUSP)

**Guilherme Guimarães Feliciano – Juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019

***Paulo Roberto Lemgruber Ebert – Doutor em Direito do Trabalho pela USP. Advogado em São Paulo e Brasília. Coordenador adjunto do Grupo de Pesquisa e Extensão “O Trabalho além do Direito do Trabalho” (FDUSP)

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